
Daniel Vieira, 30 anos, natural de São Pedro da Cova, mestre em História Contemporâneo, prepara-se para lançar o livro “Não Podiam Trabalhar com Fome”, obra que revisita a revolta contra as precárias condições existentes nas minas de São Pedro da Cova, que deu origem a uma greve histórica, em 1946. A investigação foi apresentada pelo autor, em 2011, no âmbito do mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é agora editada pela Lugar da Palavra. Ao Vivacidade, Daniel Vieira salienta o contributo para a “preservação da memória” que o livro pretende dar e recorda os motivos que levaram os mineiros a lutar contra a exploração.
Este livro resulta de um trabalho académico que explora o impacto da greve mineira de 1946. O que o levou a escolher este tema?
Daniel Vieira (DV) – A escolha deste tema deriva do caráter afetivo à freguesia de onde sou natural – São Pedro da Cova – ao facto de ter tido avós que trabalharam nas minas, de manter, ainda hoje, ligação com pessoas que trabalharam nas minas e de ter crescido com relatos extremamente duros do violento trabalho mineiro. Além disso, criei também um sentimento de injustiça pela exploração violenta, baixos salários e condições de miséria da população de São Pedro da Cova naquela época. Tudo isso levou-me a escolher este tema para a dissertação de mestrado.
A investigação é centrada no caso concreto da greve de 1946. O que o levou a optar por este acontecimento?
DV – Academicamente procuro sempre centrar os meus trabalhos no estudo da freguesia de São Pedro da Cova e, mais concretamente, no movimento operário na freguesia. Ao longo dessa investigação que fui fazendo detetei sempre a existência de vários protestos ocorridos durante o século XX nas minas de São Pedro da Cova, com particular destaque para as greves de 1923 e de 1946. A greve de 1923 teve impacto internacional e originou a solidariedade dos mineiros ingleses com os portugueses, contudo, esse tema já se encontra retratado na bibliografia do movimento operário português. Escolhi, no entanto, a greve de 1946 como alvo do meu estudo porque é o primeiro grande protesto no período do Estado Novo.
Nesse período – anos 40 – que importância tinham as minas de São Pedro da Cova para o país?
DV – As minas de São Pedro da Cova foram das mais importantes do país. Cerca de 70% da produção nacional de carvão saía daqui e as minas empregavam pessoas da freguesia e de outras zonas mineiras. Em 1943 é lançado o decreto da mobilização e as minas contam, nesse período, com a presença do Delegado do Ministério da Guerra. Há uma mobilização militar e muitos dos que já tinham abandonado os trabalhos no fim dos anos 30 são obrigados a regressar. Cria-se assim um ambiente social de protesto e aí surge a greve de 1946.
A greve teve início no dia 27 de fevereiro e prolonga-se até ao dia 1 de março…
DV – O protesto teve significado sobretudo nos dia 27 e 28 de fevereiro de 1946, mas ainda há registos da greve até aos dias 3 e 4 de março.

O que levou os mineiros à organização dessa greve?
DV – A mobilização forçada dos operários foi certamente um dos motivos. Esse fator, associado ao contexto nacional e internacional de pressão ao regime, baixos salários, fome, os acidentes de trabalho dos mineiros. Este período cruza-se também com uma fase de reorganização do Partido Comunista Português (PCP) que ganha influência nacional. Foi possível confirmar a existência da ação do partido que veio também a destacar a greve nos seus meios de comunicação. O próprio Álvaro Cunhal refere a luta mineira como um exemplo a seguir contra o fascismo.
Que operários é que se associaram a esta greve?
DV – Essencialmente os mineiros e enchedores. A adesão à greve está patente nos registos diários da Companhia das Minas. É interessante verificar que os capatazes não aderiram à mobilização de protesto, só os operários, que tinham os salários mais baixos.
Que consequências teve esta greve?
DV – A greve teve, de facto, consequências. Na consulta dos cadastros e do arquivo do Museu Mineiro pude verificar que um mês depois da greve há um aumento de salários a rondar os 15%. Os mineiros não tinham todos os mesmos salários mas existe um aumento salarial.
Como é que os agentes da PIDE lidam com esta greve?
DV – Na consulta dos ficheiros da PIDE é possível verificar a detenção de 31 operários durante e após esta greve. Nenhum deles tinha tido qualquer cadastro. Estas 31 detenções têm um profundo impacto local. A documentação da PIDE sobre este processo vai até 1948, ou seja, dois anos após a greve.
Os mineiros eram alvo de várias sanções. Há registos de casos de repressão?
DV – Sim. Os acidentes de trabalho eram muito frequentes. Durante um ano, mais de 60% dos mineiros teve, pelo menos, um acidente de trabalho. Além disso, havia uma exploração feroz e um horário de trabalho muito pesado.
É justo afirmar que as minas mudaram a freguesia?
DV – Não tenho dúvidas que não é possível perceber São Pedro da Cova sem estudar a importância das minas de carvão para a freguesia. Daqui retiraram-se milhares de toneladas de carvão e o processo revolucionário do 25 de abril na freguesia, vem na sequência da marca desumana deixada pelas minas. É verdade que as minas empregaram muita gente também. Isso deixou uma marca profunda na população.
A edição do livro, cinco anos após a dissertação da tese de mestrado, serve para recordar a história dos grevistas mineiros?
DV – Um povo sem história é um povo sem memória e sem memória não há futuro. Com a edição deste livro procuro dar um contributo para a preservação da memória sobre a exploração do homem. Dedico esta obra aos mineiros que ousaram sonhar e lutar por melhores condições de vida e a todos os que lutam pela preservação da memória em São Pedro da Cova.
A obra será lançada 70 anos após a greve de 1946, no dia 26 de fevereiro, no auditório da Escola Profissional de Gondomar. O que está a ser preparado para esse momento?
DV – Haverá uma apresentação do livro. Quero tornar esse momento num debate e num contributo para a história e para as novas gerações. Está também previsto um momento cultural com músicas alusivas às minas de São Pedro da Cova. A escolha do local também está relacionada com o bairro mineiro, onde habitaram muitos dos operários.
Quantos exemplares serão editados?
DV – Serão editados cerca de 400 exemplares desta obra.
As receitas do livro vão reverter a favor de uma causa solidária?
DV – Não tenho objetivos comerciais com este trabalho. A investigação estava concluída, surgiu a possibilidade de editar o livro e vou torná-lo público. Este é um contributo para a preservação da memória e decidi, por isso, que as receitas do livro reverterão integralmente a favor da Liga dos Amigos do Museu Mineiro que pretende preservar a memória das Minas de São Pedro da Cova.
Este poderá ser o ponto de partida para novos trabalhos de investigação sobre a história da freguesia?
DV – A minha atividade a tempo inteiro nunca me impediu de fazer outras coisas, designadamente, estudar e investigar. Continuo a fazer o doutoramento em Ciência Política e continuarei a investigar o movimento operário de São Pedro da Cova em diferentes períodos históricos. Não ponho de parte a possibilidade de retomar o tema.